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  1. [Artigo de opinião de Duarte Vilar no Expresso]

    A educação sexual nas escolas é, não só, um excelente espaço de construção de aprendizagens científicas e de educação para a saúde, mas também é uma oportunidade de compreensão dos nossos direitos, na construção das nossas identidades pessoais e nas nossas relações interpessoais

    Como toda agente sabe, quando se deixa de falar de uma pessoa ou de um assunto, seja por raiva, por distração ou desconforto, ou porque não é uma prioridade, é mais de meio caminho andado para que esse assunto ou pessoa desapareçam das nossas listas de coisas a fazer.

    E, a propósito da educação sexual, quem anda nestas lides há muito tempo, viu que, sempre que se falou e trabalhou aberta e especificamente na promoção da educação sexual nas escolas, as coisas avançaram. Quando se deixou de falar, as coisas retrocederam.

    Pasme-se, mas a primeira vez que se falou publicamente da educação sexual nas escolas em Portugal foi no Ministério da Educação Nacional em 1973 (ministro Veiga Simão) que criou um grupo de trabalho sobre estes assuntos. Antes de ser rapidamente extinta por pressão da ala mais à direita do regime, mesmo assim este grupo teve a ousadia de propor que as escolas passassem a ser mistas, e que os mapas do corpo humano fossem completos e não amputados na zona genital (o pessoal mais velho lembra-se ainda destas coisas).

    Depois deixou de se falar de educação sexual, mesmo quando a nossa democracia se instalou, quando a censura acabou, quando os costumes se liberalizaram e quando a maternidade na adolescência alcançou o seu pico mais alto no final dos anos 70. E foi por essa altura, quando um despacho que impedia o acesso dos jovens às consultas de planeamento familiar sem autorização expressa dos pais que, por iniciativa da APF (Associação para o Planeamento da Família) e de alguns profissionais de saúde, se (re)começou em 1982/83 a falar destes assuntos, da sexualidade das e dos jovens, do acesso à contraceção e do papel das escolas na educação sexual.

    Há 41 anos, a Assembleia da República aprovou a primeira legislação – a Lei 3/84 - que se chamou “Direito à Educação Sexual e ao Planeamento Familiar” com os votos a favor do PS, do PSD, do PCP e Verdes e da UDP, e com o voto contra do CDS.

    E é interessante ver o que aconteceu a seguir: o ministério da Saúde, regulamentou e começaram a abrir consultas específicas para jovens em vários pontos do país. O ministério da Educação não falou mais do “assunto”, e nada aconteceu nas escolas, a não ser os esforços avulsos de alguns professores apoiados por profissionais de saúde e da APF, que começou desde logo a fazer formação de professores nestes temas.

    Em 1986, a AR aprovou a Lei de Bases do Sistema Educativo que voltava a falar explicitamente da educação para a sexualidade, no contexto mais vasto de uma área semelhante à disciplina atual de “Cidadania e Desenvolvimento”.

    Mas novamente, nada aconteceu, ou quase: na chamada Reforma Roberto Carneiro, foi criada a disciplina de “Desenvolvimento Pessoal e Social”, que incluía explicitamente a educação sexual nas escolas. Só que não passou do período experimental e o ministro seguinte deixou de falar deste tema e as escolas voltaram a não fazer nada, ou muito pouco.

    Foi preciso que acontecesse a epidemia do VIH/SIDA nos anos 80 para que, no contexto do “Programa Viva a Escola”, se estendesse a prevenção da toxicodependência (para que tinha sido criado) à prevenção da SIDA. Quando este projeto passou a ser o “Programa de Promoção e Educação para a Saúde” (PPES) as equipas do PPES trabalharam com as escolas em todo o país, incluindo a educação sexual. Finalmente as coisas andaram em frente. Era na altura Manuela Ferreira Leita a Ministra da Educação.

    Pelo meio, entretanto, em 1999, no rescaldo do primeiro referendo sobre a IVG, a Assembleia da República tinha aprovado a Lei 120/99 que tornou a educação sexual obrigatória nas escolas e, após uma consulta pública, foi publicado o primeiro documento oficial que se chamava “Educação Sexual em Meio Escolar -Linhas Orientadoras”. Nele se identificavam os objetivos, a metodologia e o quadro ético da Educação Sexual” quer para cada um dos diferentes ciclos de ensino, quer para desenvolver a necessária relação entre a escola e as famílias.

    Só que o PPES foi extinto em 2003 por um governo PSD/CDS e, novamente, todo este trabalho parou.

    A maioria política mudou de novo em 2005, e a ministra Maria de Lurdes Rodrigues criou o Grupo de Trabalho para a Educação para a Saúde e Educação Sexual (GTES) que deu origem a diversos despachos que tornaram obrigatória a existência de um projeto anual de Educação para a Saúde e de um gabinete de educação para a saúde em cada escola, com cargas horárias definidas. O Ministério da Educação definiu 4 áreas para o projeto da escola: Nutrição e Exercício Físico, Consumos de Substâncias Tóxicas, Sexualidade e IST (Infeções sexualmente transmissíveis), Saúde Mental.

    Em 2009, a Assembleia da República voltou a discutir a educação sexual nas escolas e aprovou a Lei 60/2009, com os votos contra do PSD e do CDS e a abstenção do BE. Esta lei é, talvez, o documento legislativo mais detalhado e clarificador dos objetivos da educação sexual nas escolas, dos seus conteúdos fundamentais e da estratégia de implementação que seria sobretudo nas chamadas áreas curriculares não disciplinares em que se incluía a então Formação Cívica.

    Só que todas estas áreas desapareceram, a última, a Formação Cívica, em 2012, pela mão de Nuno Crato, pelo que parte da implementação desta lei foi posta em causa. Foi precisamente para responder a esta lacuna, que em 2017, com João Costa como Secretário de Estado da Educação, foi elaborada e publicada a ENEC – Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, após um trabalho coletivo que juntou entidades públicas e da sociedade civil, permitindo às escolas implementar esta nova disciplina a partir do ano letivo de 2018.

    Quase em simultâneo a Direção Geral da Saúde, o SICAD e a Direção Geral de Educação publicaram também em 2017 o Referencial de Educação para a Saúde que incluiu novamente a educação sexual e a Sexual e Reprodutiva.

    A ENEC defendia uma abordagem fortemente baseada na cidadania e nos direitos individuais e, a par de muitas outras áreas, incluía as questões da sexualidade e da igualdade de género- Entre 2019 e 2022, decorreu o projeto “A educação sexual dos jovens portugueses – conhecimentos e fontes” realizado por uma equipa do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, do Centro Lusíada de Investigação em Serviço Social e Intervenção Social e da Associação para o Planeamento da Família, com uma amostra de mais de 2300 adolescentes de todas as regiões do país.

    Recentemente, a Imprensa de Ciências Sociais publicou o livro “Jovens e Educação Sexual -Contextos, Saberes e Práticas” (Vieira, Vilar et Al). Em primeiro lugar, os resultados revelaram que os jovens, em especial as raparigas, falavam de muitos temas de sexualidade principalmente com os amigos (85%), com as mães (72%) mas um pequeno grupo (4%) não falavam com ninguém.

    Mais, revelaram que a maioria dos jovens tinham tido oportunidade de, durante o 3º Ciclo do Ensino Básico de abordar um leque muito alargado de temas de educação sexual, em muitas disciplinas e sobretudo nas disciplinas de Ciências Naturais e Cidadania e Desenvolvimento, bem como em atividades extracurriculares. Estas oportunidades decaíam drasticamente no Ensino Secundário, sobretudo por não haveres espaços e tempos curriculares onde se pudessem falar destes temas.

    Estes resultados testemunharam, assim, o elevado envolvimento das escolas, das suas direções e dos seus professores e de outras organizações da comunidade, principalmente os centros e profissionais de saúde, nesta dimensão educativa. Este esforço expressava-se em níveis razoáveis de conhecimentos sobre as diversas questões da sexualidade, e no uso de comportamentos preventivos pelos adolescentes, quando se envolvem em relações sexuais, duas das variáveis que foram objeto deste estudo científico.

    Tendo testemunhado os muitos avanços e recuos que houve em 41 anos de educação sexual nas escolas, hão de compreender a minha perplexidade e pessimismo face à forma, às justificações e ao documento que está em consulta pública.

    Depois de Luís Montenegro anunciar que ia libertar a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento das suas “amarras ideológicas”, as quais nunca explicitou, afinal esta libertação traduziu-se em limpar a ENEC da sexualidade e da igualdade de género. Tal como em outras alturas desta história de 41 anos, nada se avaliou mas decidiu-se mudar o que já estava feito e, aparentemente, a funcionar.

    Quanto às razões para esta limpeza, fala-se de situações desadequadas que teriam acontecido, mas não se sabe onde e quando essas situações aconteceram. Este “filme” já no passado já aconteceu, em outras campanhas contra a educação sexual nas escolas. Mesmo que se afirme que estas temáticas se podem enquadrar em outras maiores, o certo é que se deixa de falar delas, claramente. E se não se fala, serão esquecidas e iremos atravessar outro período de desinvestimento da educação sexual nas escolas.

    Afinal parece que os pais de Famalicão de dois jovens, que puseram em risco o percurso escolar dos seus filhos só porque discordavam da disciplina de Cidadania (ou de alguns dos seus aspetos que agora foram erradicados) levaram a melhor, sobre todos os outros muitos milhares de pais e mães das crianças e jovens que frequentam as escolas portuguesas.

    Se assim for é pena porque, de facto, a educação sexual nas escolas é, não só, um excelente espaço de construção de aprendizagens científicas e de educação para a saúde, mas também é uma oportunidade de compreensão dos nossos direitos, na construção das nossas identidades pessoais e nas nossas relações interpessoais. E é também um espaço de debate democrático dos valores diversos que existem sobre a sexualidade humana, incluindo mesmo os dos pais de Famalicão.

    Fico à espera de não ter razão e, mesmo com fundadas dúvidas que tal aconteça, fico à espera de que o ministro Fernando Alexandre apoie o trabalho que já se está a fazer há anos em muitas escolas portuguesas. Muitas mesmo!

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